quinta-feira, 3 de junho de 2010

Machado de Assis

DOM CASMURRO
CAPÍTULO XLIII - VOCÊ TEM MEDO?

De repente, cessando a reflexão, fitou em mim os olhos de ressaca, e perguntoume se tinha medo.
— Medo?
— Sim, pergunto se você tem medo.
— Medo de quê?
— Medo de apanhar, de ser preso, de brigar, de andar, de trabalhar...
Não entendi. Se ela tem dito simplesmente: "Vamos embora!" pode ser que eu obedecesse ou não; em todo caso, entenderia. Mas aquela pergunta assim, vaga e solta, não pude atinar o que era.
— Mas... não entendo. De apanhar?
— Sim.
— Apanhar de quem? Quem é que me dá pancada?
Capitu fez um gesto de impaciência. Os olhos de ressaca não se mexiam e pareciam crescer. Sem saber de mim, e, não querendo interrogá-la novamente, entrei a cogitar donde me viriam pancadas, e por que, e também por que é que seria preso, e quem é que me havia de prender. Valha-me Deus! vi de imaginação o aljube, uma casa escura e infecta. Também vi a presiganga, o quartel dos Barbonos e a Casa de Correção. Todas essas belas instituições sociais me envolviam no seu mistério, sem que os olhos de ressaca de Capitu deixassem de crescer para mim, a tal ponto que as fizeram esquecer de todo. O erro de Capitu foi não deixá-los crescer infinitamente, antes diminuir até às dimensões normais, e dar-lhes o movimento do costume. Capitu tornou ao que era, disse-me que estava brincando, não precisava afligir-me, e, com um gesto cheio de graça, bateu-me na cara, sorrindo, e disse:
— Medroso!
— Eu? Mas...
— Não é nada, Bentinho. Pois quem é que há de dar pancada ao prender você? Desculpe, que eu hoje estou meia maluca; quero brincar, e...
— Não, Capitu; você não está brincando; nesta ocasião, nenhum de nós tem vontade de brincar.
— Tem razão, foi só maluquice; até logo.
— Como até logo?
— Está-me voltando a dor de cabeça; vou botar uma rodela de limão nas fontes.
Fez o que disse, e atou o lenço outra vez na testa. Em seguida, acompanhou-me ao quintal para se despedir de mim; mas, ainda aí nos detivemos por alguns minutos, sentados sobre a borda do poço. Ventava, o céu estava coberto. Capitu falou novamente da nossa separação, como de um fato certo e definitivo, por mais
que eu, receoso disso mesmo, buscasse agora razões para animá-la. Capitu, quando não falava, riscava no chão, com um pedaço de taquara, narizes e perfis.
Desde que se metera a desenhar, era uma das suas diversões; tudo lhe servia de papel e lápis. Como me lembrassem os nossos nomes abertos por ela no muro, quis fazer o mesmo no chão, e pedi-lhe a taquara. Não me ouviu ou não me atendeu.

Machado de Assis

Joaquim Maria Machado de Assis, nasceu no Rio de Janeiro em 21 de junho de 1839 e faleceu na mesma cidade em 29 de setembro de 1908. Foi romancista, dramaturgo, contista, jornalista, cronista e teatrólogo brasileiro, considerado como o maior nome da literatura brasileira e um dos maiores escritores do mundo.
No dia 20 de julho de 1897 com iniciativa de Lúcio de Mendonça, fundou a Academia Brasileira de Letras.

Fonte - Trecho de Dom Casmurro: http://machado.mec.gov.br/arquivos/pdf/romance/marm08.pdf
Texto de referência: Obras Completas de Machado de Assis, vol. I,
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994.
Publicado originalmente pela Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1899.

Fonte - Dados Biográficos:http://pt.wikipedia.org/wiki/Machado_de_Assis

Nenhum comentário:

Postar um comentário